As almas não precisam de médicos, mas de sacerdotes; não necessitam de remédios, e sim de sacramentos; se uma pessoa está acometida por uma doença contagiosa e incurável, é melhor que alguém dê a própria vida por sua alma do que abandoná-la à perdição. Por acaso, dizer a ela “afastai-vos de mim” seria dar-lhe oportunidade de viver?
Os leprosos
Desde tempos antigos a lepra foi temida por todo o mundo. Não houve quem ouvisse falar dela e não medisse o drama que essa doença causava na vida dos homens. Essa enfermidade tinha sintomas muito característicos: começava por uma insensibilidade dos membros. Pouco depois passavam a surgir indícios de apodrecimento em todo o corpo, o cheiro pútrido tomava conta do infectado e algumas partes da face ou dos membros mais externos caíam. Tudo isso, aliado à debilitação da saúde dos órgãos, acabava levando o doente à morte. O pior de tudo era saber que, iniciado o processo com as primeiras insensibilidades, o fim da vida era próximo e irremediável, pois a lepra não tinha cura! Ademais, o enfermo devia isolar-se e entregar-se ao destino de todos os leprosos, pois logo tornava-se extremamente contagioso. Os egípcios, já na antiguidade, consideravam esse suplício como “a morte antes da morte”, tal era o horror que tinham a essa doença.
Molokai, o inferno
Em fins do século XIX, a lepra agitava a população do Havaí. Começaram a surgir por toda parte casos de hanseníase e, por consequência, homens circulando como chagas vivas. Alarmado, o Governo decidiu destinar-lhes uma região isolada onde pudessem esperar a morte sem contagiar toda a população.
O decreto, na verdade, os lançava no mais completo caos. Longe de seus parentes e entes queridos, sem rumo e sem futuro, reinava nesse lugar uma inimaginável desordem. O lugar não era outra coisa que um antro de homens e mulheres vivos, mas cujos corpos começavam a se decompor antes mesmo do enterro. Este verdadeiro inferno chamava-se Molokai, uma ilha na qual se entrava com a certeza de nunca mais sair.
Mons. Maigret comunicouaos seus párocos tudo o que estava acontecendo, lastimando a sorte dos leprosos e o fato de ninguém poder ministrar-lhes os sacramentos. Quando o Pe. Damião[1] tomou conhecimento disso, seu zelo pelas almas dos pobres infectados inflamou-se. Prontamente resolveu embarcar no próximo navio de leprosos que viajaria rumo a Molokai. Era 10 de maio de 1873.
Comovido com o gesto heroico do sacerdote, Mons. Maigret acompanhou-o até a hora do desembarque na ilha. Ao pôr os pés naquele pedaço de terra, o prelado lastimou o futuro do padre e resolveu dissuadi-lo de tal empresa, mas Damião já estava decidido, ele aceitou passar-se por leproso a fim de ganhá-los para o reino de Cristo. Foi o momento da despedida. O prelado deu sua última bênção e rumou para sua diocese. Agora, Damião estava sozinho.
O missionário, que até então se encontrava na praia, adentrou na colônia. Conforme se aproximava, os horrores físicos dos leprosos lhe vinham aos sentidos. Ora era um que em vez de olhos, possuía crateras cheias de pus, ora outro com orelhas inchadas e três vezes maiores que o tamanho normal. Claro está que havia alguns sem esses aspectos, pois a doença não estava tão avançada neles. Mas, mesmo assim, um escritor que por lá passou, descreveu a colônia assim: “Uma tortura diante da qual os nervos do espírito humano se encolhem, como os olhos se contorcem diante da luz do sol […]. É um lugar terrível para se visitar e um inferno para morar”. Foi no meio dessa gente que o sacerdote chegou ao que eles chamavam de vila: umas palhoças amontoadas entre enormes pilhas de lixo.
Nenhum recanto daquela vila deixou de ser visitado pelo Pe. Damião. Em todos os lugares ele sentia um clima deprimente e cheio de abatimento. Ele bem poderia aplicar àquele lugar a frase que Dante imaginou no inferno: “abandonai toda esperança, vós que aqui entrais”. Até mesmo o cenário contribuía para isso, pois era formado por um despenhadeiro que fazia daquele lugar uma verdadeira prisão.
Só uma coisa deu alívio ao sacerdote: uma capela de madeira dedicada a Santa Filomena. Ao entrar nela, ajoelhou-se e rezou; logo depois improvisou uma vassoura e começou seu trabalho: a limpeza. Mal terminara, pediram que ele celebrasse a encomendação do corpo de um leproso morto pela doença no dia anterior. A miséria era tal que nem caixão existia para colocar o morto. Damião assustou-se ao ver, no cemitério, túmulos que não passavam de valas remexidas e restos mortais espalhados pelo lugar, espargindo um odor horrível. Para o cúmulo, um leproso disse que à noite cachorros vinham se alimentar dos restos mortais.
Após haver terminado a encomendação, sua cabeça transbordava de ideias para melhorar a vida espiritual e física dos habitantes de Molokai, mas não teve muito tempo para as pôr em prática, pois uma velhinha puxou-o pela manga pedindo uma bênção para o filho que ia morrendo. Ao chegar ao local da bênção – uma cabana suja – Damião, muito comovido, deu sua primeira unção dos enfermos naquela ilha. A noite já ia avançando quando o moribundo expirou. A senhora, depois da morte de seu filho, quis fazer uma confissão ao sacerdote. Disse não ser católica, mas, depois de ter presenciado a paz trazida aos últimos momentos de seu filho, quis se converter. Damião batizou-a no dia seguinte e ela também pôde juntar-se ao seu filho.
A primeira noite
Damião não possuía casa, de modo que se preparou para dormir sobre o chão duro ao lado da capela. Contudo, as lembranças do que tinha visto naquele dia fizeram com que não dormisse. Começou então a prestar atenção no que ouvia pela vila: sons de doentes que se lamentavam, alguns gritos de crianças sem esperança de alcançarem a maturidade. Porém, havia outros ruídos, algo que parecia impossível de acontecer naquela conjuntura: gritos de bêbados, gargalhadas de jogadores, ladrões assaltando e – desgraça talvez ainda maior – gritos que expressavam orgias.
Tudo indica que ele não tenha dormido, mas sim permanecido em vigília, fazendo desagravos ao que acontecia e pedindo forças para suportar aquela vida.
As mudanças
Essa noite serviu de experiência para o sacerdote. Agora, já sabia o que devia fazer. Sem perder um só instante, destinou todos os seus dias à função que lhe cabia: o cuidado das almas. Para tal, foi necessário ouvir confissões de leprosos cheios de vermes que cuspiam saliva e pus por cima dele; celebrar Missa numa capela onde o ar era sufocante devido ao mau cheiro decorrente da doença; administrar a unção dos enfermos em corpos desprovidos de vários membros; fazer pregações exortando a mudança de vida. Muitas vezes, Damião exercia a função de coveiro e fabricava os caixões. Por causa de todos esses trabalhos, muitos leprosos adquiriram confiança no bom Pe. Damião.
Porém, ainda tinha muito o que fazer. Uma das coisas que faltavam na ilha era a água. Muitos não quiseram ir procurá-la, preferindo viver na imundície. Então, Damião por conta própria resolveu explorar um vale, onde descobriu um reservatório natural. Uma vez descoberto, foi necessário pedir ao Governo, que muito demorou para atendê-lo, enviar-lhe o material necessário para a extração e o transporte da água em direção à vila.
Mesmo assim, insistentemente teve de implorar a ajuda dos leprosos para conseguir transportar o material até o vale, pois ninguém queria trabalhar. Enfim, após longos dias de árdua tarefa, ouviu-se o murmúrio da água caindo através do aqueduto construído pelo sacerdote. Assim, mais uma vez, Damião aproveitou-se de uma coisa tão simples como é a água para fazer com que o povo deixasse a vida de imundície e começasse a ingressar no caminho para a pátria celeste.
Todavia, nem todos ficaram contentes em ter um sacerdote católico exortando-os a mudarem de vida e fazendo tanto bem. Assim, muitos não quiseram se converter, ameaçando de morte o santo sacerdote caso continuasse as pregações!
A intervenção divina
Uma das coisas necessárias na vila era a construção de novas casas. Porém, os leprosos recusavam-se a abandonar as choupanas sujas. Desse modo, Damião não teve outra saída senão rezar… e Deus ouviu suas preces.
Certo dia, um furacão veio em seu auxílio fazendo todas as primitivas construções voarem pelos ares; depois, uma chuva torrencial lavou completamente o lugar, tirando forçosamente os leprosos de lá.
Porém, sem casa, como viveriam os leprosos? Damião resolveu ir pessoalmente a Honolulu a fim de pedir ajuda sanitária urgente. Como sempre, o Governo o fez esperar…
Após sair de Honolulu, voltou para Molokai naquele mesmo dia. Na época já circulavam notícias a respeito de seu exílio voluntário, a tal ponto que um periódico publicou o seguinte comentário: “Sem que isto signifique nenhuma concessão à doutrina que esse homem professa, temos de proclamar em voz alta: é um herói!”
Apesar do fracasso junto às autoridades, vários benfeitores quiseram fazer doações e, desse modo, Damião conseguiu construir a nova vila.
Muito a fazer
Tal dedicação sem reservas marcou toda a existência do Pe. Damião junto aos leprosos, até que um dia, a doença o colheu também.
Graças ao seu empenho como missionário e por não ter temido diante de uma peste, Damião mudou a vida dos leprosos. Graças aos seus esforços, seu nome ressoa nos púlpitos como modelo de generosidade. Graças à sua elevação de espírito em meio aos tormentos da vida, pôde contemplar a face de Deus. Graças ao muito que tinha a fazer diante de uma peste sem cura, curou aquilo que verdadeiramente importa a um sacerdote depois de sua própria alma: o rebanho de Cristo, pelo combate sem quartel a todos os vícios.[2]
Por Fábio Soares
FONTE: GAUDIUMPRESS